«(...) há uma razão muito simples, que ninguém quer admitir, e que tem a ver com a permanência nos valores mentais, nos hábitos da nossa democracia, dos quadros do Portugal de Salazar. Valores como o "respeitinho", a hipocrisia pública, a retórica antipolítica, a tentação de considerar que o suprapartidário é bom, a obsessão pelo "consenso", o medo da controvérsia, a cunha e a clientela, mesmo a corrupção pequena, a falta de espírito crítico desde as artes e letras até à imprensa e Igreja, tudo vem do quadro do salazarismo e reprodu-lo. O medo do conflito, essa tenebrosa herança de 48 anos de censura, permanece embrenhado na vida política da democracia e isso dá vida à nostalgia da pasmaceira vigiada de Salazar.
(...) O que me interessa é recensear que atitudes, nostalgias, hábitos, costumes, práticas, que ninguém associa a Salazar, mas vêm directamente dele e do Estado Novo, continuam vivos, adoecendo a nossa democracia. Isso sim, é importante.»
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Dificilmente haverá melhor exemplo desta vigilância provinciana e castradora do que aquela a que a "imprensa livre e democrática" se auto-submete, todos os dias, em todos os meios.
A liberdade e a democracia têm, quanto à imprensa nacional, um sentido meramente formal, senão mesmo caricatural.
Quase toda ela é administrada pela Sonae, pela Lusomundo e pelos grupos económico-financeiros afins (os quais, pela natureza das coisas, não podem ter uma visão desinteressada e distante dos factos e das notícias, como ainda recentemente se tornou embaraçosamente evidente a propósito das férias judiciais, da restruturação da Administração Pública e da greve dos professores).
A que não é detida por tais empresas privadas, é indirectamente controlada pela maior empresa privada do país, com sede ali na Gomes Teixeira (e isso o anteprojecto de proposta de lei sobre limites à concentração da titularidade nas empresas de comunicação social, em discussão pública até ao fim do mês, não vai resolver, nem pretende...) Por outro lado, a maior parte dos editoriais (escritos por e para minorias influentes) e artigos de opinião (de forte pendor encomiástico) tem, sob a capa da isenção e objectividade, uma indisfarçável adesão a preconceitos político-partidários (contem-se os deputados, ex-ministros, autarcas e "agentes" culturais, entre outros, que engrossam as listas de comentadores e analistas, até de futebol!), o que seria aceitável se houvesse uma inequívoca declaração prévia de interesses... Onde está ela? Viram-na?
(continua oportunamente)