Terapia política. Introspecção psicossocial. Análise simbólica.

20 agosto 2006

[347] Nota ético-jurídica: a fundamentação da decisão

A Escola Nacional de Magistratura do Brasil incluiu, na sexta-feira (30/6/2006), na sua base jurisprudencial, o despacho pouco comum do juiz Rafael Gonçalves de Paula, da 3.ª Vara Criminal da Comarca de Palmas, no Estado de Tocantins. O órgão considerou de bom senso a decisão do seu associado, mandando soltar Saul Rodrigues Rocha e Hagamenon Rodrigues Rocha, detidos sob a acusação de furtarem duas melancias.
DECISÃO
Trata-se de auto de prisão em flagrante de Saul Rodrigues Rocha e Hagamenon Rodrigues Rocha, que foram detidos em virtude do suposto furto de duas (2) melancias.
Instado a se manifestar, o Sr.Promotor de Justiça opinou pela manutenção dos indiciados na prisão.
Para conceder a liberdade aos indiciados, eu poderia invocar inúmeros fundamentos: os ensinamentos de Jesus Cristo, Buda e Ghandi, o Direito Natural, o princípio da insignificância ou bagatela, o princípio da intervenção mínima, os princípios do chamado direito alternativo, o furto famélico, a injustiça da prisão de um lavrador e de um auxiliar de serviços gerais em contraposição à liberdade dos engravatados e dos políticos do mensalão deste governo, que sonegam milhões dos cofres públicos, o risco de se colocar os indiciados na Universidade do Crime (o sistema penitenciário nacional)...
Poderia sustentar que duas melancias não enriquecem nem empobrecem ninguém.
Poderia aproveitar para fazer um discurso contra a situação econômica brasileira, que mantém 95% da população sobrevivendo com o mínimo necessário apesar da promessa deste presidente que muito fala, nada sabe e pouco faz.
Poderia brandir minha ira contra os neo-liberais, o consenso de Washington, a cartilha demagógica da esquerda, a utopia do socialismo, a colonização européia,....
Poderia dizer que George Bush joga bilhões de dólares em bombas na cabeça dos iraquianos, enquanto bilhões de seres humanos passam fome pela Terra - e aí, cadê a Justiça nesse mundo?
Poderia mesmo admitir minha mediocridade por não saber argumentar diante de tamanha obviedade.
Tantas são as possibilidades que ousarei agir em total desprezo às normas técnicas: não vou apontar nenhum desses fundamentos como razão de decidir.
Simplesmente mandarei soltar os indiciados.
Quem quiser que escolha o motivo.
Expeçam-se os alvarás. Intimem-se.

Rafael Gonçalves de Paula,
Juiz de Direito
*
(recebido por correio electrónico)

4 comentários:

Anónimo disse...

Lindo! Podem importar-se juizes destes cá para Portugal?

Joca

Anónimo disse...

Mensagem do autor: na decisão não se fez menção ao mensalão e ao presidente, como se vê no texto original, que segue abaixo.

"Trata-se auto de prisão em flagrante de Saul Rodrigues Rocha e Hagamenon Rodrigues Rocha, que foram detidos em virtude do suposto furto de duas (2) melancias. Instado a se manifestar, o Sr. Promotor de Justiça opinou pela manutenção dos indiciados na prisão.

Para conceder a liberdade aos indiciados, eu poderia invocar inúmeros fundamentos: os ensinamentos de Jesus Cristo, Buda e Gandhi, o Direito Natural, o princípio da insignificância ou bagatela, o princípio da intervenção mínima, os princípios do chamado Direito alternativo, o furto famélico, a injustiça da prisão de um lavrador e de um auxiliar de serviços gerais em contraposição à liberdade dos engravatados que sonegam milhões dos cofres públicos, o risco de se colocar os indiciados na Universidade do Crime (o sistema penitenciário nacional), ...

Poderia sustentar que duas melancias não enriquecem nem empobrecem ninguém.

Poderia aproveitar para fazer um discurso contra a situação econômica brasileira, que mantém 95% da população sobrevivendo com o mínimo necessário.

Poderia brandir minha ira contra os neo-liberais, o Consenso de Washington, a cartilha demagógica da esquerda, a utopia do socialismo, a colonização européia, ...

Poderia dizer que George Bush joga bilhões de dólares em bombas na cabeça dos iraquianos, enquanto bilhões de seres humanos passam fome pela Terra — e aí, cadê a Justiça nesse mundo?

Poderia mesmo admitir minha mediocridade por não saber argumentar diante de tamanha obviedade.

Tantas são as possibilidades que ousarei agir em total desprezo às normas técnicas: não vou apontar nenhum desses fundamentos como razão de decidir.

Simplesmente mandarei soltar os indiciados.

Quem quiser que escolha o motivo.

Expeçam-se os alvarás de soltura. Intimem-se.

Palmas – TO, 05 de setembro de 2003.


Rafael Gonçalves de Paula
Juiz de Direito"

Unknown disse...

Senhor Dr. Gonçalves de Paula,
foi um prazer ter recebido o seu comentário, aqui no Divã, corrigindo uma imprecisão no texto recebido, curiosamente, de um jurista brasileiro.
Dessa incorrecção me penintecio, embora seja alheio a ela.
Aproveito a oportunidade para reafirmar a coragem e senso de justiça que esta decisão revelam.
Apareça sempre por aqui, com seus comentários e reflexões.

Anónimo disse...

Parabéns por essa decisão. Trata-se de um ser de extrema competência que merece ocupar o cargo que exerce.

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