Era esta a resposta dada pela raça goda aos filhos de África e do Oriente, que diziam, mostrando os alfanges: "É nossa a terra de Espanha."
O dito árabe foi desmentido; mas a resposta gastou oito séculos a escrever-se. Pelaio entalhou com a espada a primeira palavra dela nos cerros das Astúrias; a última gravaram-na Fernando e Isabel, com os pelouros de suas bombardas, nos panos das muralhas da formosa Granada: e a esta escritura, estampada em alcantis de montanhas, em campos de batalha, nos portais e torres dos templos, nos lanços dos muros das cidades e castelos, acrescentou no fim a mão da Providência: "Assim para todo o sempre!" (...)
Como longa fita de muitas cores, recamada de fios de ouro e reflectindo mil acidentes de luz, a extensa e profunda linha dos cavaleiros mouros sobressaía na veiga entre as searas pálidas que cobriam o campo. Defronte deles, os trinta cavaleiros portugueses, com trezentos homens de armas, pajens e escudeiros, cobertos dos seus escuros envoltórios, e lanças em riste, esperavam o brado de acometer.
Quem visse aquele punhado de cristãos, diante da cópia de infiéis que os esperavam, diria que, não com brios de cavaleiros, mas com fervor de mártires, se ofereciam a desesperado trance. Porém, não pensava assim Almoleimar, nem os seus soldados, que bem conheciam a têmpera das espadas e lanças portuguesas e a rijeza dos braços que as meneavam. De um contra dez devia ser o iminente combate; mas, se havia aí algum coração que batesse descompassado, algumas faces descoradas, não era entre os companheiros do Lidador que tal coração batia ou que tais faces descoravam.
Pouco a pouco, a planura que separava as duas hostes tinha-se embebido debaixo dos pés dos cavalos, como no tórculo se embebe a folha de papel saindo para o outro lado convertida em estampa primorosa. As lanças iam feitas: o Lidador bradara Sant'Iago, e o nome de Allah soara em um só grito por toda a fileira mourisca. (...)
Quem hoje ouvir recontar os bravos golpes que no mês de Julho de 1170 se deram na veiga da frontaria de Beja, notá-los-á de fábulas sonhadas; porque nós, homens corruptos e enfraquecidos por ócios e prazeres de vida afeminada, medimos por nosso ânimo e forças as forças e o ânimo dos bons cavaleiros portugueses do século XII; e todavia, esses golpes ainda soam, através das eras, nas tradições e crónicas, tanto cristãs como agarenas. (...)
Os portugueses seriam já apenas sessenta, entre cavaleiros e homens de armas: mas pelejavam como desesperados e resolvidos a morrer. Mais de mil inimigos juncavam o campo, de envolta com os cristãos. A morte de Ali-Abu-Hassan foi o sinal da fugida. Os portugueses, senhores do campo, celebravam com prantos a vitória. Poucos havia que não estivessem feridos; nenhum que não tivesse as armas falsadas e rotas. O Lidador e os demais cavaleiros de grande conta que naquela jornada tinham acabado, atravessados em cima dos ginetes, foram conduzidos a Beja.
Após aquele tristíssimo préstito, iam os cavaleiros a passo lento, e um sacerdote templário, que fora na cavalgada, com a espada cheia de sangue metida na bainha salmeava em voz baixa aquelas palavras do Livro da Sabedoria:"Justorum autem animae in manu Dei sunt, et non tanget illos tormentum mortis."
Alexandre Herculano, A morte do Lidador