Terapia política. Introspecção psicossocial. Análise simbólica.

05 fevereiro 2007

[428] Poesia do mundo: "A Invenção do Amor"

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos
autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e
detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de
fuga
um cartaz denuncia o nosso amor.
.
Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com caracter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana.
.
Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio
A descoberta
A estranheza
de um sorriso natural e inesperado.
.
Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna.
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo.
.
Um homem e uma mulher um cartaz denuncia
colado em todas as esquinas da cidade.
A rádio já falou.
A TV anuncia
iminente a captura. A polícia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e nas avenidas.
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o
mundo.
É preciso encontrá-los antes que seja tarde.
Antes que o exemplo frutifique. Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia.
.
Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos.
Chamem as tropas aquarteladas na província.
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva.
Todos decrete-se a lei marcial com todas as consequências.
O perigo justifica-o. Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade.
.
É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas.
.
Fechem as escolas. Sobretudo
protejam as crianças da contaminação.
Uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram.
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado
aos longos silêncios e aos choros sem razão.
Aplicado no entanto. Respeitador da disciplina.
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos.
Ainda bem que se revelou a tempo. Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação.
Mas é possível que haja outros. É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença.
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade.
.
Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de
discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas...
.
É possível que cantem
mas defendam-se de entender a sua voz. Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas.
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
lhe lembravam a infância. Campos verdes floridos
Água simples correndo. A brisa das montanhas.
Foi condenado à morte é evidente. É preciso evitar um mal maior.
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta...
.
Procurem a mulher o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva.
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção.
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo que inventou o amor com carácter de urgência.
.
Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias.
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua.
.
Daniel Filipe (1925 - 1964), "A Invenção do Amor e Outros Poemas", Lisboa, Presença, 1972

4 comentários:

inominável disse...

um poema maravilhoso... estarão esses amantes escondidos aqui, no meu Berlim?

PhoenixOcean disse...

poema fantastico, de curtar a respiração.

Anónimo disse...

obrigada, nuno, pelos teus comentários. e pelas citações que aqui publicas. um abraço.

Unknown disse...

obrigado a todos.
pela curiosidade e pela simpatia.

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